Pilotos mentirosos, exagerados e convencidos

Quem conhece diversos pilotos, certamente deve conhecer um que toma certas liberdades com os fatos, exagera seus sucessos, elimina fracassos, cria campeonatos que não existiram, lembra-se de ultrapassagens delirantes e inventa até mesmo corridas imaginárias. Não só pilotos, mas "n" pessoas que mexem com o esporte têm essa característica. Não é um atributo do esporte que amamos - estas figuras se encontram  em todas atividades humanas.

O texto que segue, "Aventuras Monegascas" é uma obra de ficção, que usei para homenagear um piloto morto. Apareceu pela primeira vez no blog do notável Conde Rodolpho Chimentão. O hiperbólico Conde consegue se contextualizar em diversas situações históricas, com amigos famosos - porém sempre já falecidos. Presidentes, reis, papas, atores, artistas, cientistas. Sem contar o fato de falar perfeitamente dezenas de idiomas, ter mais de vinte diplomas universitários, tocar dezenas de instrumentos musicais, e ser especialista em muitos esportes.

Quem estiver interessado nas outras estórias do Conde, visitem http://rodolphochimentao.blogspot.com. Por ora, divirtam-se com a estória automobilística. Bonus - a estória sobre o recorde da pista velha de Interlagos. 


AVENTURAS MONEGASCAS

Rainier simplesmente me amava. Quer dizer, Rainier e Grace me amavam. Diziam que quando eu ia ao principado, o sol brilhava mais forte, o mar era mais azul, e as joias de Grace reluziam mais. Não sou homem dado a ruborizações, porém, o casal me elogiava tanto que às vezes eu parecia o Brasinha.

Insistiam sempre que eu fosse ao seu sofisticado domínio durante a semana do Grande Prêmio, principalmente na época em que eu morava em Paris. Frequentemente mandavam um jatinho me buscar, cheio de champanhe e caviar.

O ano era 1972. Não estava querendo ir ao Grande Prêmio naquele ano. Tinha acabado de voltar de uma excursão ao Annapurna, que escalei em tempo recorde, e estava um pouco cansado para badalações. Rainier me chamou:

- Chi-chi (era assim que me chamava), estou enviando o avião te buscar amanhã.
- Não faça isso comigo, Rainier, acho que esse ano não vou.
- Nada disso, mon ami. Sem você o sol brilha mais fraco em Monaco.
- Só que esse ano vai chover, Rainier, e chover forte!
- Como você sabe disso?
- Ora, formei-me em meteorologia, não se recorda, lá na Sorbonne.
- Então vou cancelar o GP deste ano. Sem você, não tem graça. Nada de Grand Prix este ano!

Mediante a ameaça, resolvi ir a Monaco mais uma vez. Não queria estragar a festa, e no fundo gostava de ser paparicado pela lindíssima Grace e por Rainier.

Chegando lá, perambulando pelos boxes, encontro um agitado Jean Pierre Beltoise, um grande amigo de longa data. O francês me levou para o lado e me confidenciou:

- Rodolpho, não sei mais o que fazer com essa BRM. O carro está muito ruim. Acho que vou me aposentar ou ver se a Matra me arranja um segundo carro. Você não quer dar umas voltas e ver se conserta ele para mim?

Esperamos o Louis Stanley dar as costas, e lá entro eu no carro, com o capacete do JPB. Realmente, a barata não estava muito boa. Dei cinco voltas, e quando vi que o Stanley estava indo ao banheiro (ele ia muito ao banheiro), entrei nos boxes e saí correndo do carro. Os mecânicos acharam que eu era Jean Pierre, que também precisava ir ao banheiro.

Sentei com Jean Pierre e lhe dei algumas dicas. Melhorias na suspensão, mudar o tanque de gasolina do lugar, mexer no aerofólio da frente e da traseira. Tudo explicadinho num papel.

No domingo, caiu o maior temporal. Eu bem que tinha avisado Rainier. Diga-se de passagem, rain é chuva em inglês, rainier mais chuvoso, mas isso é mera coincidência, não vem ao caso.

Na hora da corrida, Beltoise largou na frente, e não abandonou mais a primeira posição. Fiquei contente de ter ajudado um amigo...

Só que...

...perguntei a um mecânico onde estava um papel assim, assado, o tal papel em que tinha escrito minhas dicas para Jean Pierre. Ele me disse que JP levou o papel ao banheiro, estava faltando papel higiênico, e ele teve um episódio intestino, uma terrível emergência.

- E vocês mudaram algo no carro?
- Não, deixamos do jeito que estava no treino de ontem.

Não tem jeito. Não era dia de Chimentão, era dia de Jean Pierre Beltoise...  

RECORDE DA PISTA VELHA DE INTERLAGOS

Ando muito atarefado, por isso sumi. Ainda não desisti de achar minhas recordações, que estavam num certo voo de Kuala Lumpur para a China. Sei que as possibilidades são pequenas, porém, um Chimentão não desiste fácil. Tenho muitas razões para isso, uma delas comprovar o caso que narrarei a seguir.

Ontem alguém postou maravilhado, no Facebook, que um Porsche de LPM1 fizera 328 kmph na reta de Interlagos. Isto é pinto.

Em 1973, fiquei sabendo que os filhos do Barão estavam interessados em construir um F1 brasileiro. Como sempre gostei de automobilismo, e modéstia a parte, fui um senhor piloto (já corri inclusive de dublê de um piloto num Grande Prêmio, fato narrado neste blog), o assunto me interessou. Porém, minha ambição era mais singela - bater o recorde de Interlagos com um carro com motor brasileiro!

O projeto demorou um pouco. Quando falei dele para o Ciro Cayres, ele riu na minha cara. Foi dele o recorde da pista durante mais de década, porém, com carro estrangeiro. Como trabalhava na GM, Ciro achava que não tinha nenhum motor brasileiro que poderia bater o recorde de Interlagos, naquelas alturas por volta de 2m30s, marcado por um F1.

Meu mecânico particular, Ricardo Domingos Morsa, e o grande engenheiro José João Gomes começaram a identificar as possibilidades. Minha pseudo aposta com Caires não foi de quebrar o recorde da pista com um carro brasileiro, mas sim com um carro com motor brasileiro. Ainda assim, decidi que quebraria o recorde absoluto da pista com um Fusca!

Morsa era um mago dos motores, mas não gostava das competições. Preferia cuidar das minhas coleções de carros na Europa, Brasil e EUA, e de vez em quando se aventurava pelas pistas. Decidimos que precisávamos de uma ajudinha do exterior, e trouxemos o Jorgen Torensen da Alemanha, especialista em motores turbo.

Deu trabalho, e custou uma boa grana meu projeto. Simplesmente decidimos fazer um Super-Fusca. Nada de bi-motor - era um quadrimotor, com dois motores na traseira e dois atrás. Além disso, todos bi-turbos. Na primeira vez que rodamos no dinamômetro, quebrou o equipamento. Na sua última versão, a motorização tinha uma potência de aproximadamente 1500 HP. Construímos dez motores.

Não havia categoria para esse carro no Brasil, nem nos EUA. Tinha rodas de Can-Am, e o chassis não era de um Fusca, lógico. Fizemos o chassis com um material experimental, que viria a ser chamado de fibra de carbono anos mais tarde. Os freios também eram de Can-Am, mas o grande problema era o câmbio. Já sábíamos quão difícil era pilotar o bi-motor de Cascavel, portanto, como não iríamos competir com o carro, simplesmente optamos por colocar câmbio automático sincronizado. Nada de mudar marchas e apertar quatro embreagens! A solução foi do gênio Torensen. A carroceria também era de fibra de carbono, mais longa, parecendo um Fusca com anabolizantes. Afinal de contas, tinha que caber os dois motores dianteiros.

Eventualmente fui provar o carro em Brands Hatch e Paul Ricard, com pista fechada. Confesso que tive alguns problemas, porém, em novembro de 1976 estava pronto para tentar quebrar o recorde de Interlagos com minha criação. Chico Landi conseguiu fechar o autódromo para mim, e ocultar o evento da imprensa.

Convidei diversos amigos do automobilismo para presenciar a efeméride - José Carlos Pace, Marivaldo Fernandes, Luis Greco, Norman Casari, Ciro Cayres, Camilo Christófaro, Chico Landi, José Pedro Chateaubriand, Luis Pereira Bueno, todos curiosíssimos para ver que tipo de carro eu usaria. Alguns achavam que eu tinha trazido um Porsche 917-30 de Can-Am, outros um carro de Fórmula Indy. Quando o Fusca foi colocado na pista, todo mundo riu.

Ri melhor quem ri por último.

Quando liguei o motor, os risos se transformaram em espanto. O ronco dos quatro motores turbo era realmente fora deste mundo. Sabia que as primeiras voltas seriam difíceis, e de fato, rodei no Bico de Pato logo na primeira volta de reconhecimento. Nunca tive muita sorte com patos. Os oito turbos do carro eram difíceis de controlar, porém, levando na maciota, já tinha marcado 2m45s na primeira volta. Dei mais cinco voltas, e aí parti com tudo. O resultado me espantou - 2m19s4/100! Sim, meu Fusca com 1500 HP havia quebrado o recorde da velha pista de Interlagos. Aliás, o recorde semi oficial de Interlagos é meu até hoje.

Todo mundo ficou de boca aberta, mas o maior espanto veio com os resultados do carro no retão - 375 km por hora!!! Por isso digo, dá para rir da velocidade do Porsche LMP1 na corrida de ontem. Os pilotos ficaram animados com a conquista, e me tiraram do carro com abraços e beijos. Luisinho chorava, Ciro gargalhava, Camilo me abraçava.

Eis o fato - ninguém nunca conseguiu bater esse recorde. J.P. Jabouille chegou perto com um Renault de F1, porém, os recordes de velocidade e de pista de Interlagos são meus, com um Fusca!

Pena que as testemunhas já tenham morrido, e todo meu registro fotográfico e filmográfico do evento estava dentro dos meus baús no fatídico voo da Malaysian Airlines.

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