Carreiras medianas

Admito que prefiro ler sobre carreiras de pilotos que não obtiveram extremo sucesso nas pistas. Primeiro, muitos dos fatos descritos em livros sobre pilotos bem sucedidos são de amplo conhecimento do público, pois os holofotes da imprensa especializada tendem a focalizar os astros. Segundo, muita coisa nos livros sobre os famosos têm filtros de advogados, contadores, especialistas em relações públicas e imprensa, conselheiros mil, etc, principalmente nos tomos mais modernos, visando aumentar o valor de marketing-merchandising do dito piloto e não lhes causar problemas de ordem jurídica ou de imagem. Acabam se tornando muito artificiais. Terceiro, em virtude dos dois aspectos acima, há mais livros sobre pilotos ultra bem sucedidos do que pilotos que obtiveram pouco sucesso nas suas carreiras, ou só chegaram a um determinado nível mediano. As biografias (ou autobiografias) de pilotos medianos acabam mostrando mais a realidade do mundo automobilístico do que um livro básico sobre Ayrton Senna, por exemplo.

Existe um pequeno problema com estes livros, discutido mais profundamente a seguir.

Quando comecei a escrever sobre automobilismo brasileiro na Internet, recebi um email com uma bronca de um ex-campeão brasileiro da Classe A da Divisão 1. Segundo o piloto, eu discriminava sua classe, por ser a mais simples (e cabe lembrar, também a menoz veloz) do automobilismo brasileiro da época, e que eu devia rever meus conceitos. Ocorre que existem algumas poucas pessoas que podem mencionar de cor e salteado os vencedores na geral das 24 Horas de Le Mans, porém, duvido que alguém consiga o mesmo feito para todas as categorias da grande corrida. Diga-se de passagem, houve época em que haviam mais de meia dúzia de classes nesta prova, além do complicado índice de eficiência térmica. Querendo ou não, permanece o foco nas vitórias na classificação geral de qualquer corrida.

Não se preocupem, neste post não vou cair no mesmo erro de alguns anos atrás, quando disse que um determinado piloto brasileiro não teve resultados quantitativamente brilhantes no exterior (apesar de ser bilhante). Embora estivesse comprovadamente certo no que disse, pois me ative ao aspecto objetivo, o piloto era muito popular e fui tachado de "n" coisas, inclusive "corno". Neste caso, trata-se de um livro sobre o piloto italiano Teodoro Zeccoli, portanto, duvido que seja alvo de exaltadas injúrias.

Os amantes da Fórmula 1 não reconhecerão o nome, por que Zeccoli nunca correu na F-1. Os "tifosi" superficiais das corridas de endurance não reconhecerão seu nome entre os vencedores de corridas no auge do Mundial de Marcas, pois nunca as venceu, porém, os mais atentos devem se lembrar dele entre os figurantes do campeonato. Poucos brasileiros prestavam atenção no Campeonato Europeu de Turismo nos anos 60 e 70, porém, aqueles poucos que seguiam o campeonato com certeza se lembrarão de Zeccoli que ganhou provas no campeonato, durante algum tempo dominado pela Alfa-Romeo. E os fãs brasileiros dos anos 70 se lembrarão do piloto, pois participou dos 500 km de Interlagos de 1972, pilotando uma Alfa-Romeo T33 da Autodelta.

Isto posto, Zeccoli ficou conhecido como um alfista, daí o nome da sua semi-autobiografia, "Teodoro Zeccoli, Cuore Alfa", escrito por Michael John Lazzari  (Maglio Editore).  Acima de tudo, Zeccoli foi piloto de provas da Alfa durante muitos anos, e por suas mãos passaram a GTA, GTAM, TZ, Cupê 33,  Montreal, TT33, Alfasud na pista de provas de Balocco. Apesar do ângulo Alfa, Zeccoli, que correu alegadamente mais de 300 vezes em diversos continentes, também disputou corridas com Osca, Abarth, Ferrari, Alpine, Porsche, Iso, ATS, Bandini, Maserati, etc. Hoje tem uma concessionária BMW na Itália.

O livro, disponível somente em italiano, contém uma série de histórias divertidas sobre o automobilismo da época. Teodoro teve uma longa carreira, dos anos 50 a 70, e obteve algumas vitórias na geral, embora a grande maioria dos seus sucessos tenham sido vitórias em classe, como o nosso querido ex-campeão da Divisão 1.

Agora, vamos ao problema. A grande falha do livro tem a ver justo com a alusão a vitórias. Teodoro, através de depoimentos ao autor, faz muitas menções de vitórias dando a impressão de que foram conquistas na classificação geral, quando não foram. De fato, o livro alega ter sido Zeccoli campeão do Campeonato Europeu de Turismo, quando nunca foi (nem em classes). Certos "fatos" estão obviamente errados - por exemplo, um Porsche 917 é colocado pelo autor em uma corrida em 1968, e a sua descrição dos participantes da corrida em Jarama de 1969, válida para o ETC, é falaciosa. Na realidade, ele obviamente se refere à corrida de 1970, incluindo uma participação inexistente do ex-campeão de F1 Graham Hill na prova, fazendo uma grande confusão de datas. Sua vitória na geral em uma 24 Horas de Spa (implicitamente referida) também não ocorreu.

Longe de mim dizer que tais informações incorretas foram inseridas no livro maliciosamente, de forma a glorificar uma carreira mediana excessivamente, embora fique exatamente esta impressão. O grande problema é, considerando-se as inúmeras informações comprovadamente falhas, pode-se confiar na veracidade de certos outros dados específicos? Por exemplo, que a certa altura das 24 Horas de Le Mans de 1969, Zeccoli e Sam Posey, que pilotavam uma velha Ferrari 250 LM, chegaram a estar no segundo posto? Infelizmente, este é o primeiro lugar em que leio este inusitado "fato", curiosamente sobre uma corrida famosa sob diversos aspectos (estreia do 917, morte de Woolfe, primeira vitória de Jacky Ickx em Le Mans e última vitória da Ford na corrida, última largada estilo Le Mans nesta corrida). De fato, o excelente livro com a história do Mundial de Marcas, do especialista Janos Wimpfen, só menciona a Ferrari de Zeccoli para dizer que era um velho carro que completava a classe de protótipos até 3 litros, sequer mencionando o nome dos pilotos. Já os quatro artigos republicados no livro "Le Mans The Ford and Matra Years, 1966-1974" também deixam de registrar o heróico exploit da dupla ítalo-americana. De fato, nos quatro artigos republicados, a única menção referente à Ferrari usada pela dupla é de que esta fora a mesma Ferrari usada por Rindt-Gregory na sua vitória em 1965, mencionando que o carro ocupava a nona posição naquela ocasião (o carro terminou em oitavo lugar). Um outro artigo dá as cinco primeiras posições em intervalos de quatro horas, e a dupla Zeccoli-Posey não apareceu sequer uma vez no top 5. Notem que o train de corrida foi forte, e o 917 de Elford-Atwood resistiu até além de 20 horas de corrida, seguido de outros dois Porsche 908 e Ford GT40.

Este é o maior problema de biografias de pilotos que tiveram carreiras medianas, a vulga hipérbole - para os menos esclarecidos em figuras de linguagem, o exagero. É possível que a certa altura a vetusta Ferrari até estivesse em segundo lugar na sua classe, porém, nunca na geral. Fica o dito pelo não dito, porém, a informação me pareceu uma verdadeira viagem na maionese. Como muitas outras no livro, fique o registro.

Uma outra curiosidade, na realidade, um erro recorrente. Embora tenho pilotado quase exclusivamente carros esporte, GT e de turismo, os autores (digo autores pois Zeccoli é frequentemente citado ipsis verbis em grande parte do texto) se referem a carros como Alfa P33 e Alfa T33 como monopostos, quando não eram monopostos, e sim bipostos. As "barchettas" que disputavam o Mundial de Marcas dos anos 60 e 70 tinham, por força de regulamento, lugar suficiente para instalação de um segundo assento ao lado do piloto, e assim, eram chamadas de bipostos.    

Apesar disso, recomendo o livro, que não custou caro (19 Euros), pois transmite bem o ambiente menos profissional (e perigoso) das corridas de antanhos.

Para os curiosos, os autores não fazem a mínima menção da participação de Zeccoli em Interlagos, em 1972. Quem sabe até por que Zeccoli tomou uma lavada de Marivaldo Fernandes, que pilotou um carro do mesmo tipo na prova e fez uma corrida bem superior à do "collaudatore" alfista...

Carlos de Paula é tradutor, escritor e historiador de automobilismo baseado em Miami.       

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