Falando em obscuridade, que tal um F1 africano?

Hoje em dia corre-se relativamente pouco no continente africano. Não estou falando de rallyes e raids, mas sim de corridas em circuitos fechados. Entretanto, nos anos 30, o GP de Tripoli, na Líbia, era uma das principais provas do calendário internacional. Na mesma década,  a equipe da Auto Union fez uma excursão à África do Sul, que lhe rendeu bons resultados econômicos, se não esportivos. Na década seguinte, aquela que pode ter sido a primeira corrida monomarca ocorreu no Egito, com Cisitalias. Nos anos 50, o Marrocos tinha um automobilismo bastante animado, com corridas em Casablanca, Agadir e Marrakesh atraindo pilotos de gabarito como Maurice Trintgnant e nosso Da Silva Ramos, e o país  acabou inclusive incluído no Mundial de Pilotos. Até o Congo Belga foi palco de uma corrida internacional de certo porte, na qual o piloto de GP André Pilette quase perde a vida.

Nos anos 60, houve grande expansão das atividades automobilísticas internacionais na África do Sul. Além do GP oficial, foi realizada a série Springbok, com corridas também na Rodésia (hoje Zimbabue) e Moçambique. Angola também entrou no eixo, e foi inaugurado um bom autódromo em Luanda com a presença de pilotos internacionais, inclusive brasileiros. Até o Senegal foi palco de algumas corridas internacionais, inclusive as Seis Horas de Dacar ganhas por Jean Pierre Jarier (em dupla com Raymond Tourol) em 1977.

Não há dúvida de que apesar da variedade geográfica, a África do Sul foi e continua até hoje sendo o principal foco de automobilismo sério no continente, embora o GP de F-1 não seja realizado há anos, e apesar das importantes corridas em Marrakesh, Marrocos )Formula E e WTCC).

Cabe aqui um parentesis. Num dos grupos de F-1 do qual participo no facebook, uma pessoa propôs uma resenha, perguntando qual foi o piloto de F-1 mais desconhecido. Acho que muita gente não entendeu o espírito da proposta. Teve gente que disse até José Carlos "Pasce" (assim grafado), outros mencionaram pilotos com ampla e bem sucedida participação no automobilismo internacional, com títulos inclusive. Obviamente o autor da proposta queria ver quem tirava da cartola o piloto mais obscuro, aqueles que sequer mereciam correr na F-1, considerando-se sua falta de pedigrê, mas correram ou tentaram correr. Aqui o ângulo sul africano se torna interessante.

Durante alguns anos, de fato até 1975, a África do Sul era o único país do mundo a ter seu próprio campeonato de F-1. A Argentina também tinha um campeonato chamado Argentino de F-1, mas eram monopostos locais, com motores locais, longe de ser carros de GP. Apesar de um certo exagero em chamar o campeonato Sul Africano de um campeonato de F-1, pois nele participavam também carros de Fórmula Junior, e depois de F-2, Fórmula Tasmânia e F-5000, o fato é que os principais carros eram carros de GP. Sim, no começo dos anos 60 enquanto corríamos com Gordinis e DKWs no Brasil, disputavam-se corridas com carros de F-1 na África do Sul! Por causa disso, muitos dos pilotos mais obscuros da F-1 foram participantes exclusivos do GP sul africano. Diversos nunca correram fora do cone sul da África!

Além desses pilotos obscuros, houve dois carros obscuros, o LDS com diversos motores e o Alfa Special, a própria motorização Alfa Romeo era inusitada na F-1 da época.

Comecemos com o primeiro GP da África do Sul válido para o Mundial de F-1, em 1962 . Cabe mencionar que o sul africano Tony Maggs era o piloto número 2 da Cooper naquela temporada, e de fato, conseguira um segundo lugar na França. Além de Maggs, o rodesiano John Love também disputou corridas de Formula Junior com bons resultados na Europa, porém não conseguiu dar seguimento à sua carreira no Velho Continente. Além de Maggs, que chegou em terceiro, Love também estava presente nesse primeiro GP da África do Sul válido para o Mundial, também munido de Cooper. Outro piloto local que teve uma excelente participação naquela corrida foi Neville Lederle, que largou em 10o. e terminou em 6o., obtendo um ponto.  Diversos outros pilotos locais participaram. O mais interessante foi L.Doug Serrurier, cujo LDS-Alfa Romeo conseguiu durar 63 voltas.  Ernest Pieterse participou com uma Lotus-Climax, e terminou em 13o., 11 voltas atrás do vencedor Graham Hill. Mike Harris teve sua única participação num GP naquele ano, como um Cooper T-53 com motor Alfa Romeo.  Terminou em 14o. Além destes, Bruce Johnstone não soubre aproveitar bem seu carro, um BRM inscrito pela fábrica, e terminou em nono.

A corrida foi realizada em East London novamente, em 1963. O vencedor foi Clark, e diversos pilotos locais participaram. Maggs continuava na Cooper, e foi o melhor colocado sul-africano no grid e na chegada, 7o. Pieterse correu outra vez, com Lotus Climax, e abandonou. Love participou com um Cooper, terminou em nono. Serrurrier participou com seu LDS-Alfa Romeo mais uma vez, com um companheiro, o rodesiano Sam Tingle. Doug terminou em 11o., Tingle foi o primeiro abandono.  Brausch Niemann participou com um Lotus-Ford, e chegou em 14o. Além destes, Peter de Klerk participou pela primeira vez com um Alfa Special, abandonando, e Trevor Blokdyk participou com um Cooper Maserati, chegando em 12o. Paddy Driver marcou 1m36.9 s com um Lotus-BRM, mas não largou. Ou seja o contingente local (fora Maggs, que era piloto da Cooper) somou oito pilotos, inclusive dois carros construídos localmente, ou seja F-1 africanos!

O GP não foi realizado em 1964, mas voltava ao calendário em 1965. Mais uma vez foi ganho por Clark, e mais uma vez foram muitos os inscritos locais. Só que desta vez, muitos dançaram e não se classificaram para a corrida: Blokdyk (Cooper Climax), Lederle (Lotus-Climax), Serrurier (LDS-Climax), Niemann (Lotus-Fird) e Pieterse (Lotus-Climax). Além destes, diversos outros pilotos sequer se pré-classificaram, entre eles David Charlton e Jackie Pretorius  (Clive Puzey também não se classificou e outros pilotos nem apareceram) Com um número maior de concorrentes europeus, os pilotos africanos simplesmente tinham um handicap muito grande. Além de Maggs, que disputou seu último GP com uma Lotus-BRM da equipe Parnell, os outros locais que conseguiram largar foram Love (Copper Climax, abandonou), De Klerk (Alfa Special, 10o. lugar), Tingle (LDS-Alfa, 13o.).

O LDS Alfa Romeo. Um dos dois carros de F-1 africanos.

A África do Sul ficou de fora novamente em 1966, porém voltou com tudo em 1967, já em Kyalami. 
De fato, nessa corrida quase ocorre a maior zebra da F-1. John Love, que largou em quinto lugar (a melhor posição no grid de um piloto local que não participava regularmente da F1), achou-se na liderança na fase final da corrida, quando Denis Hulme teve problemas de freio. Com um Cooper Climax de 2,7 litros,  liderou até faltarem  7 voltas, quando teve que parar para reabastecer, dando a vitória a Pedro Rodriguez  – a última vitória de um Cooper e de um carro com motor Maserati no Mundial. Love ainda conseguiu o segundo lugar, ou seja, a melhor posição de um piloto local “especialista” nas provas sul-africanas. Na F-1 de 3 litros, o número de locais diminuou bastante. David Charlton finalmente estreou com um Brabham, Sam Tingle participou com um LDS e Luki Botha tinha um Brabham, todos com o motor Climax 2.7. Charlton e Botha ainda estavam na pista no final, porém não foram classificados, e Tingle abandonou.

O GP de 1968 foi o último GP de Jim Clark, e também sua última vitória. O melhor sul-africano foi Charlton, que largou com um Brabham Repco em 14o. lugar, abandonando. Love estava uma fila atrás, também com um Brabham Repco, e terminou em nono. Basil Van Rooyen estreava com um Cooper Climax, e abandonou. Além destes, Tingle participou pela última vez com o LDS, desta vez com motor Repco e Jackie Pretorius tinha um Brabham Climax 2.7.

O GP de 1969 contou com poucos pilotos, somente 18 na largada, sendo 4 locais. Por isso, dois conseguiram classificação para a largada no top 10, Van Rooyen, com um McLaren-Ford e John Love, com um Lotus-Ford, 9o. e 10o. Os outros dois locais no grid foram de Klerk e Tingle, os dois com Brabham-Repco, na última fila. Somente Tingle foi classificado na chegada, 8o., e de Klerk estava 13 voltas atrás de Stewart na bandeirada final.

Já 1970 contou com um grid mais cheio, 23 carros, mas o número de sul-africanos e rodesianos parecia diminuir. Charlton participou com um Lotus, largando em 13o.. Os dois outros locais ocupavam a última fila, de Klerk, com Brabham e Love, com Lotus.  As posições se inverteram na chegada, com Love em 8o., de Klerk em 11o. e Charlton em 12o.

Em 1971 Charlton disputou o GP com um Brabham oficial. Largou em 12o., mas abandonou. Os outros locais presentes foram Pretorius, também com Brabham, e Love, com March. Os três abandonaram. Entretanto, naquele ano Charlton fez dois GPs com a equipe oficial da Lotus, na Holanda e Inglaterra. Entre todos pilotos locais, Charlton sempre foi aquele que se destacou, aquele que, alguns criam, poderia fazer grandes coisas na Europa.

Em 72, Charlton de novo foi o mais rápido entre os locais. Com sua Lotus 72D, largou em 17o. na frente do carro de fábrica do seu xará Walker. John Love fez seu último GP com um Surtees, e Willy Ferguson não largou, com problemas na sua Brabham. Dois outros fatos importantes aconteceram para os sul-africanos. No final da temporada, Jody Scheckter, que se tornaria o principal piloto sul-africano da história, fez seus primeiros GPs como terceiro piloto da McLaren, na América do Norte, e impressionou. E a equipe de Charlton, Scuderia Scribante, levou seu Lotus para disputar algumas corridas europeias. O sul-africano foi inscrito na França, Inglaterra e Alemanha. Seu carro ganhava tudo na África, porém teve desempenho fraco no velho Continente contra carros mais bem preparados. Caiu a ficha. 1967 era 1967, 1972 outra coisa.

Em 1973, Jody, que nunca participara do Sul-Africano de F-1, fez seu primeiro GP no seu país. Largou na primeira fila, e teve excelente desempenho, mas acabou chegando em 9o. Outros três sul-africanos na prova foram David Charlton, que largou em 12o. com sua Lotus, e abandonou, Jackie Pretorius, que alugou o fraco Iso-Marlboro, e Eddie Keizan, que comprara um Tyrrel antigo. Pretorius abandonou, e Keizan ficou 12 voltas atrás de Stewart.

A prova de 1974 marcou a estreia do irmão mais velho de Jody, Ian, com um Lotus (largou em 22o.). David Charlton estreava um carro novo, um McLaren M23, mas ainda assim largou somente em 20o. lugar. Além destes, também participaram Eddie Keizan com seu Tyrrel (largou em 24o.) e Paddy Driver com Lotus (largou em 26o.) Jody largou no pelotão dianteiro, mas teve um desempenho discreto nos seus primeiros dias com a Tyrrell. Jody chegou em 8o., Ian em 13o., Keizan em 14o. e Charlton em 19o. Driver abandonou.

No GP de 1975, ganho por um sul-africano pela primeira vez (Jody em seu Tyrrell oficial, claro), participaram Charlton com McLaren, pela última vez, além de Ian Scheckter com Tyrrel 007, Keizan com Lotus e Guy Tunmer também com Lotus.   Os feitos dos locais foram plenamente ofuscados pelo prodigioso vencedor, mas cabe lembrar que Tunmer chegou em 11o., Keizan em 13o, Charlton em 14o. e Ian abandonou.

O GP de 1976 foi o último no qual um “local” participou, neste caso, Ian Scheckter com seu Tyrrell 007 da Lexington Racing. Ian era o óbvio substituto do múltiplo campeão David Charlton, e largou em 16o. só duas filas atrás do seu irmão mais cotado com carro de fabrica. Foi o primeiro a abandonar, devido a acidente, assim fechando o ciclo das participações de pilotos e carros locais no GP da África do Sul. As autoridades resolveram substituir a cara F-1 (e também carros de F-2 e F-5000, cabe lembrar) pela Formula Atlantic, que Ian dominou durante muitos anos. 1976 também marcou o ano da chegada da televisão à África do Sul. Com isso, imagino, diminuiu um pouco o prestígio dos eventos automobilísticos, com uma opção de entretenimento mais em conta e moderna.  

Nessa história toda cabe uma menção honrosa a L.D.  Doug Serrurrier e seus LDS, carros que disputavam um único GP por ano, frequentemente com motores fracos. Os tempos eram outros, heróicos até. Serrurier foi um importante piloto local da década de 50 e 60. Seu LDS era uma cópia do Cooper de 1957 (quase tudo era copiado na época, cabe lembrar, inclusive no Brasil), e foram construídos cinco exemplares. Além  do Mk1, o Mk2 e o Mk3 também participaram do Mundial de Pilotos, o primeiro baseado num Cooper, o segundo, num Brabham.  Peter (Piet) de Klerk era outra figura carimbada e construiu seu Alfa Special, que provavelmente era um pouco mais original do que o LDS. Certamente De Klerk não era muito vaidoso, dando ao seu carro o simplório nome de Special. Poucos sabem, houve não um, mas dois carros africanos de Fórmula 1, construídos nos anos 60, ainda por cima. Além disso, a maioria dos pilotos aqui mencionados participou somente de corridas na África do Sul, Rodésia e Moçambique, nunca competiram na Europa, Oceania ou EUA. Mais desconhecido que isso, não conheço.       

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