O Grande Prêmio que não existiu

Um número imenso de corridas cai no mais completo ostracismo no momento em que a bandeirada final é dada. Isto apesar do esforço e despesas dos participantes, muitas vezes com grande sacrifício. Tente por exemplo achar o resultado completo da maioria das provas da Stockcar brasileira, e saberão o que estou dizendo. Que dizer então de milhares de provas mais humildes.
Ou seja, a omissão de reportagens de corridas não é incomum. O incomum é encontrar uma reportagem de uma corrida que não aconteceu!
Somente um par poderia ser autor desta travessura, a revista Motor Sport, e o jornalista Denis Jenkinson, ambos ingleses. A Motor Sport é a mais antiga revista de automobilismo do mundo, editada desde 1924, e, de fato, existe até hoje. Já Jenkinson é um dos mais conhecidos, e alguns diriam, melhor e mais talentoso jornalista especializado em automobilismo da história. Autor de muitos livros, Jenkinson também ficou conhecido por ser o co-piloto de Stirling Moss, com Mercedes-Benz, na Mille Miglia de 1955, devidamente vencida pela dupla.
Uma das peculiaridades de Jenkinson era o fato de ser "old-school". É verdade que nos seus últimos anos, Jenks, como era conhecido, já tinha se rendido à modernidade. Mas em meados dos anos 70, Denis, que assinava suas reportagens DSJ, resistia a certos ventos de mudança que assolavam o automobilismo. Ficou famosa a troca de farpas entre Jenkinson e Jackie Stewart, nas próprias páginas da Motor Sport, em 1972. Jackie, que tinha uma coluna num jornal inglês, se empenhava para aumentar a segurança das pistas, carros e corridas, ao passo que Jenkinson achava que certas reações eram desmedidas, o que rendeu uma resposta bruta de Stewart, publicada na própria revista.
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Assim, não é surpreendente que Jenkinson não tenha engolido a troca da pista longa de Nurburgring (Norsdschleife) por Hockenheim, como sede do GP da Alemanha, a partir de 1977, em grande parte decorrente do terrível acidente sofrido por Niki Lauda no GP de 1976. Para Jenkinson, Nurburgring era sagrado.
Isso ficou patente na edição de setembro de 1977 da revista. Além de reportagens sobre os GPs da Alemanha e da Áustria, aparecia, na página 44, uma reportagem intitulada "Der Grosser Preis Von Deutschland", que quer dizer GP da Alemanha em alemão. No índice, já se nota algo peculiar - a referência à "Hockenheim Formula 1 Race" (corrida de Formula 1 em Hockenheim), em vez de Grande Prêmio da Alemanha. O título dado na própria reportagem é outro, "Der Kleine Preis Von Deutschland" (Pequeno Prêmio da Alemanha), que indica, de forma patente, o desgosto de DSJ com o novo local do GP da Alemanha.
Ocorre que DSJ, que não assinou reportagem "Der Grosser Preis Von Deutschland", mas cujo estilo é óbvio, usou três páginas da revista para narrar os acontecimentos de uma corrida de F1 que nunca foi realizada! E o fez de uma forma tão realista, que os menos avisados devem insistir até hoje que a corrida aconteceu.
Na fértil mente de Jenks, foram realizados dois GPs da Alemanha naquele ano, o oficial realizado em Hockenheim, e a popular corrida de Nurburgring, que demonstrava a insistência do automobilismo tradicional em sobreviver incólume às mudanças da era.
E assim foi criado o GP que não existiu.
A narrativa é deliciosa. Aqui ficam claras algumas das preferências de Jenks. Entre outras, Chris Amon é chamado pela Shadow para correr num dos seus carros, mas se recusa, confirmando a aposentadoria. Niki Lauda fica em casa, cortando a grama. Max Mosley produz um número assustador de Marches para a corrida, pois nem todas as equipes compareceram. A Tyrrel, por exemplo, fez forfait, apesar de Jackie Stewart ter se oferecido para acertar os difíceis carros de 6 rodas. E por pouco o March de seis rodas corre, com Ian Scheckter, cujo irmão Jody resolveu ficar em casa, pois a corrida não contava pontos para o Mundial. Dieter Quester quase participa num dos Marches. Emerson e o Copersucar estavam fazendo testes.
Eis o grid do imaginário GP, com formação 3-2-3 (não usada desde 1973) e 22 carros:
1. Mass (McLaren)
2. Stuck (Brabham)
3. Hunt (McLaren)
4. Ickx (March)
5. Nilsson (Lotus)
6. Laffite (Ligier)
7. Stommelen (March)
8. Andretti (Lotus)
9. Derek Bell (March)
10. Regazzoni (Ensign)
11. Jones (Shadow)
12. Reutemann (Ferrari)
13. Jarier (Penske)
14. Tambay (Ensign)
15. Tim Schenken (March)
16. Ertl (Hesketh)
17. Merzario (March)
18. Schuppan (Surtees)
19. Lunger (McLaren)
20. Neve (March)
21. Edwards (BRM)
22. Henton (BRM)
Na sublime imaginação de Jenks, Tim Schenken volta a correr na F1. Ickx, Stommelen e Bell, apesar dos March, estão no Top-10 do grid. Para Jenks, obviamente a March era a última chance de manter os independentes na F1, e nesta sua peça de ficção, os carros têm uma performance maravilhosa. De fato, Ickx, um especialista em Nordschleife, obtém o quarto tempo, e corre entre os primeiros durante grande parte da prova. Jenks também sonha com duas BRM na pista, uma óbvia impossibilidade em 1977. Com uma dose de realismo, as BRM ocupam a última fila...
Stuck saiu na frente com o Brabham, mas eventualmente perde o lugar para os dois McLarens. As duas BRM abandonam na primeira volta, e Brian Henton quase entra no seu March particular para continuar a corrida...
No fim das contas, quem ganha a prova é Jochen Mass, fazendo a alegria da multidão de alemães, e Hunt bate o recorde do Nordschleife.
O resultado final do GP que não existiu foi:
1. Jochen Mass, McLaren M26
2. J. Laffite, Ligier
3. C. Reutemann, Ferrari
4. C. Regazzoni, Ensign
5. D. Bell, March
6. P. Tambay, Ensign
7. M. Andretti, Lotus
8. B. Lunger, McLaren
9. J. Hunt, McLaren
10. A. Jones, Shadow
11. V. Schuppan, Surtees.
A nota cômica final é o desaparecimento de Vittorio Brambilla, que saiu da pista com o Surtees nos treinos. Big John estava tão entretido com o novo pupilo Schuppan, que não notou o desaparecimento do italiano. Este tinha caído numa ribanceira, e ficou tentando tirar o carro de lá sozinho durante dois dias.
Por razões óbvias, não há fotos do evento na "reportagem". As únicas três fotografias são dos anos 30, ilustrando Caracciola, uma Mercedes e um Auto-Union nos boxes.
Brilhante obra de sarcasmo.

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