Crônicas do além

A imprensa especializada em automobilismo do Brasil dos anos 60, começo dos anos 70 tinha uma notável característica. Parecia priorizar os não-acontecimentos, em detrimento dos acontecimentos.

Assim, uma leitura de revistas e jornais da época nos rende um extenso corolário de estórias, boas (ou más) intenções que nunca sairam do papel, ou quiçás, nunca passaram além de uma conversa de boxes ou oficina, ao passo que corridas que realmente aconteceram caíram no maior ostracismo possível.

Já escrevi em detalhes sobre o assunto. Autódromos que nunca foram construídos, participações de brasileiros em Indianapolis e Le Mans, carros que nunca foram importados, e outros que nunca foram construídos, calendários não cumpridos com provas em locais incríveis, sem dizer categorias que nunca foram criadas. São tantas "estórias" que dá para criar um blog especializado, que certamente ganharia um prêmio literário para obras de ficção.

Por outro lado, centenas de corridas realizadas com muito esforço em diversas áreas do Brasil nunca foram sequer mencionadas na imprensa nacional. As inaugurações de pistas de terra em Guaporé e Cascavel, por exemplo, não foram mencionadas nas duas revistas nacionais da época, que frequentemente publicavam artigos (com maquetes e elaborados croquis) de autódromos que nunca saíram do papel em diversas áreas do país. Por bem, por mal, as pistas de terra de Cascavel e Guaporé um dia resultaram em autódromos asfaltados.


Entre outras crônicas do além encontravam-se reportagens furadas - não furos de jornalismo, notem bem - sobre o automobilismo de ponta. Uma notável reportagem apareceu numa edição da Quatro Rodas em 1971.

O grande furo da temporada, a milionária entrada da Marlboro na F1, como patrocinadora da BRM, passou completamente despercebido. A reportagem também dizia que Van Lennep e Marko seriam pilotos da BRM patrocinados por firmas holandesa e austríaca, respectivamente!

O assunto da reportagem era o plantel da Formula 1 em 1972. A reportagem continha incríveis "desinformações" nunca lidas em outro lugar.

Entre outras, dizia que Graham Hill, um dos pilotos da Brabham em 1971, se mudaria para a Surtees em 1972, e Tim Schenken, o outro piloto da equipe, ficaria na Brabham. Exatamente o contrário ocorreu. Schenken foi para a Surtees, Hill ficou na Brabham!

Um inacreditável chute fora foi a "notícia" de que a Ford alemã estaria preparando um carro de Formula 1 para Rolf Stommelen, com motor Weslake V12! Onde estava a lógica disso, não sei. O motor mais bem sucedido da época era de longe o Cosworth V8, motor patrocinado pela Ford, e certamente a empresa não iria enterrar um saco de Deutsche Mark num motor competidor! Aliás, diga-se de passagem, umas páginas atrás, NA MESMA REVISTA, uma reportagem dizia que o Weslake V12 nunca seria usado na F1.

Outra característica da imprensa brasileira na época era colocar os pilotos brasileiros em equipes que dificelmente os contratariam nas circunstâncias da época. A mesma reportagem dizia que Mario Andretti continuaria a ser piloto da Ferrari na F1 em 1972, mas não faria a temporada inteira (acertou). Só que disse que o seu provável substituto seria José Carlos Pace! É verdade que eventualmente Pace pilotou para a Ferrari, na sua equipe de protótipos, no final da temporada de 1972 e na temporada de 1973. Entretanto, seria bastante improvável que a Ferrari o contratasse para a equipe de F1 em 1972, pois Pace nem sequer tinha estreado na categoria! Além disso, a Ferrari tinha uma série de outros pilotos contratados, e naquela época, (geralmente o terceiro piloto era um italiano - notem que os italianos sempre consideraram Andretti um italiano) que poderiam facilmente preencher a lacuna deixada por Andretti em algumas corridas. Lá por volta do final de 1973 Pace entrou num shortlist da Ferrari para ocupar o posto de número 2 na Scuderia, mas a equipe acabou contratando Niki Lauda.


O mais chato é que muitas destas "reportagens", tidas como fait acompli, rendem intermináveis discussões até hoje, afinal, foram escritas por "bem informados" especialistas, coisa de bastidores mesmo, dá pra cheirar até a graxa...

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