Como eram as coisas e como são hoje - o automobilismo brasileiro sob a ótica da mídia

Às vezes me perco escrevendo sobre míríades de coisas que mal me interessam, e sobre as quais sei pouco. Melhor seria escrever sobre experiências pessoais, memórias, pois é a única coisa que posso falar com autoridade, e agregar verdadeiramente ao mundo cibernético. Portanto, gostem ou não, este post tem visões muito pessoais, porém, se pensarem um pouco, tenho quilos de razão.

Já mencionei algumas vezes que outro dia, ao ler uma revista Quatro Rodas de 1962, me deparei com uma insólita afirmação - de que na época o automobilismo era o segundo esporte mais popular do Brasil, em termos de público. Isto antes de Emerson, Piquet e Senna, antes mesmo que a Rede Globo existisse!!! Nem a QR tinha uma forte seção de competição, que só começou em 1963. De fato, só existia o autódromo de Interlagos, porém, corridas eram esporadicamente realizadas em dezenas de cidades Brasil afora, sempre com bastante público.

Em 1962 mal tinha dois anos, portanto, não posso dar grandes experiências vivenciais sobre o que era o automobilismo na época. Sempre gostei de carros, porém, não tenho ideia se já me amarrava neles há 51 anos atrás...

Entretanto, é possível ver jornais, revistas da era, e chegamos a uma constatação curiosa. Seja por falta de pauta, ou qualquer outra razão, os jornais da época davam boa cobertura ao automobilismo de competição, apesar de terem menos páginas. Em São Paulo, a Folha de São Paulo patrocinou diversas edições dos 500 km, e de fato, já começava a falar da corrida lá por volta de julho, agosto (a corrida sempre ocorria em setembro). No dia 8, a corrida frequentemente era assunto de capa. Os Diários Associados também patrocinaram algumas corridas.

Vamos ao que interessa, os anos 70, quando, embora jovenzinho, já era uma pessoa com gostos, e memória. Vou falar das minhas experiências vivenciais e percepções.

Como eram as segundas feiras após as corridas domésticas? Não vou mentir e dizer que a cobertura era sempre farta. Porém, frequentemente era possível ler razoáveis artigos, com resultados, sobre as corridas realizadas em São Paulo, em diversos veículos. A Folha, Folha da Tarde, Jornal da Tarde e a Gazeta Esportiva sempre tinham artigos, de fato, a Gazeta Esportiva chegou a ter um suplemento automobilístico semanal durante anos. Durante a semana, vez por outra a revista Placar publicava excelentes artigos sobre automobilismo, escritos por Lemyr Martins, geralmente sobre automobilismo internacional, porém, vez por outra sobre as corridas domésticas. E publicava resultados no suplemento de resultados. No mês seguinte, era possível ler reportagens das provas nas revistas Quatro Rodas e Auto Esporte, depois na Grand Prix, e vez por outra, em tabloides especializados, que não duravam muito tempo, porém, deleitavam os amantes do automobilismo enquanto duravam.

Na TV as corridas eram poucas. Lembro-me do Festival do Ronco, provas da Super-Vê e de Divisão 1, nos anos 70, e do programa da TV Gazeta . A própria F1 era rara na telinha no começo dos anos 70, não só no Brasil, como no mundo. A África do Sul, por exemplo, já tinha seu GP há anos, porém a TV só chegou no país em 1976!

As reportagens já na fase do patrocínio comercial tinham amplas e irrestritas menções dos nomes dos patrocinadores. As equipes eram conhecidas pelos nomes dos patrocinadores, foi assim que descobri que existia uma Ifesteel, Tenenge, Diauto, Thermoid, Persico Pizzamiglio, e centenas de outras empresas. Os artigos continham muita informação sobre os treinos, a corrida em si, até mesmo dos preparativos, muita fofoca de bastidores. Não eram meras notinhas.

Um belo dia, as coisas mudaram. As importações de carros foram permitidas sem restrição no Brasil, algo que, embora positivo, atacou de frente o automobilismo de competição. Isto porque as duas principais revistas do "ramo", a QR e AE, que antes penavam para ter pauta (eram poucos os modelos de carros vendidos no Brasil, e era muito difícil ter reais novidades sobre o mercado, "nova lanterna traseira do Opala", "cores novas do Fuscão", só coisas interessantes deste tipo), agora tinham muito assunto. Sendo assim, o foco das publicações mudou, e  a cobertura das corridas ficou cada vez mais exígua. Surgiram outras revistas, Motor 3, Grid e Racing, porém, as coisas mudaram, pois a QR e AE eram revistas editadas por grupos mais fortes, com maior poder de distribuição. Até hoje, procure a revista Racing nas bancas da Avenida Paulista e terá uma desagradável surpresa.

A esta altura do campeonato, a cobertura das corridas nacionais nos jornais também foi se exaurindo. Era a época do sucesso dos brasileiros na F1, Piquet, Senna, e os centímetros quadrados das páginas de esportes dos jornais eram dedicados quase exclusivamente à categoria xodó da RGT.

A cobertura estática das corridas mudou mais ainda com a chegada da internet e expansão da TV a cabo. A cobertura eletrônica passou a ser cada vez mais importante. E a estática, em mídia impressa, diminuiu de importância e volume.

Confesso para vocês, gosto de ler no banheiro, e mesmo na praia, e no metrô de Nova York, na época em que pegava metrô para o trabalho. Em qualquer lugar. Há revistas antigas que já li ou folheei centenas de vezes. Na internet, quando vejo o resultado de uma corrida, geralmente é a primeira e última vez que leio sobre o assunto. Sem contar que os relatos são curtos e nada interessantes. Curioso, o custo de editar um site é muito menor do que editar e distribuir uma revista (não se deixe enganar por gente que quer dar mais importância ao seu trabalho e diz que custa uma fortuna), portanto, em tese, escrever grandes reportagens sobre as corridas domésticas não consumiria muito dinheiro. Meus sites me custam meros US$14,00 por mês...

Por que, pergunto eu, tem gente que tem saudade da Divisão 4 no Brasil? Não me entendam mal, eu também gostava da categoria, mas a verdade é que a D4 só teve uma temporada boa, 1973, e nas outras quatro, a categoria sofreu, até morrer uma morte inglória em 1975. A última corrida da categoria, em Interlagos, deu vontade de chorar. A cobertura estática, e a possibilidade de reler sobre o assunto, ver as fotos, se inteirar das intrigas de bastidores, deram à categoria uma aura mística que sobrevive quase quarenta anos. E não é só a D4. O mesmo se aplica à Super-Vê, carreteras, FF, D3, e D1. Vejam A Divisão 3, a categoria C (depois B) só teve um grid substancial numa única corrida, nos 500 km de Interlagos de 1974. Em todas outras corridas, raramente havia mais de 6 ou 7 carros.

Aí veio a TV. A TV também é uma faca de dois gumes. Você vê a corrida, e consome. Dois minutos depois de terminar, já está pensando na próxima, e mal se lembra do que aconteceu na prova. Na temporada seguinte, nem se lembra do que aconteceu na anterior. Mas se é um pouco mais atingo, se lembra que Paulo Gomes ganhou os campeonatos de D3 e D1 de 1975.

O produto eletronico é um produto de consumo imediatista.

Estou mentindo? Está bem, por que há diversas dezenas de blogs que falam sobre as corridas dos anos 60 e 70, e de meados da década de 80 em diante, mal se fala sobre as épicas batalhas realizadas nas nossas pistas? Será que as corridas eram tão melhores assim nos anos 60, ver DKWs batalhando contra Gordinis em pistas de paralelepípedos tão melhor do que ver Maseratis na pista contra Lamborghinis?

Entendo que a ausência do automobilismo na mídia impressa seja um dos principais fatores daquilo que alguns chamam de crise no nosso automobilismo. Dos autódromos com arquibancadas vazias, de grids pequenos em certas categorias e de categorias made for TV.

Os jovens não descobrem mais o automobilismo, por que não têm onde descobrir. O ponto de partida não existe. Sim, o mundo mudou, e hoje os jovens tem N outras opções de diversão, inclusive, e principalmente, diversões virtuais. Para que se descambar para autódromos que frequentemente ficam longe dos centros da cidades, quando há tantas outras coisas a fazer, inclusive no conforto da sua casa? Os grandes jornais mal falam das corridas locais. Quando falam, são notinhas. Preferem gastar milhões de therabytes falando sobre jogadores de futebol brasileiros que foram jogar na Bessarábia, e dos quais ninguém nem lembra mais no Brasil, ou falar de esportes internacionais como tênis, que pouca gente verdadeiramente segue no país.

A meu ver, quase não existe marketing para o automobilismo doméstico. A NASCAR se tornou o sucesso que é nos EUA - para a maior parte da população, é sinônimo de corridas de carro - por causa do merchandising. No Brasil, um país com hordas de consumidores ávidos por merchandising de todos os tipos, o automobilismo doméstico é um zero à esquerda nessa área. Criar uma coleção de carrinhos da Stockcar, por exemplo, e dá-los como brindes com revistas, alimentos, em postos de gasolina, com McDonalds, até remédios, com certeza aumentaria o interesse das crianças no esporte praticado aqui. Isto é só uma ideia. Pode parecer besta, mas o meu interesse inicial no automobilismo se deu por causa de um álbum de figurinhas distribuído pelas revistas Disney, lá por volta de 1967, 68. E um artigo sobre o esporte na enciclopédia Conhecer. Coisas que crianças como eu liam.

Quem gosta do automobilismo vai continuar gostando, vai ficar lembrando de corridas com carros que mal faziam 100 km por hora na reta, e romantizando uma era que não volta mais. Há muito marqueteiro de primeira no Brasil, e tenho certeza de que pode aparecer algum Mauro Salles por aí que ajude a levantar o esporte, através de marketing, merchandising e expansão da cobertura na mídia geral.  

Sem isso, vamos ficar eternamente reclamando.

Carlos de Paula é tradutor, escritor e historiador de Automobilismo baseado em Miami e cheio de opiniões.

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