Monaco 1984, trinta anos depois

Até o dia 15 de novembro de 1889 não existia nenhuma evidência de que o Marechal Deodoro da Fonseca fosse republicano. Entretanto, após pelo menos um ano e pouco de tensão entre o Exército e o Governo, coube ao veterano da Guerra do Paraguai proclamar a república no Brasil. Na realidade, o que Fonseca certamente queria fazer era depor o Ministério Ouro Preto, quiçás mantendo o doente Imperador no seu lugar. Como no final das contas, acabou o velho e também doente Deodoro sendo persuadido a proclamar a república, mudar o regime e mandar a Família Real para o exílio?

Existe um detalhe curioso. O possível substituto de Ouro Preto, escolhido pelo Imperador, seria o gaúcho Silveira Martins. Até aqui nada. Entretanto, alguns anos antes, Deodoro e Silveira Martins almejaram os amores de uma mesma mulher, e o gaúcho saiu vencedor. A partir daí, ganhou a mulher e um inimigo ferrenho. Dizem que o que pesou na balança para a tomada de decisão do até então não-republicano Deodoro da Fonseca foi a possibilidade de se vingar de um desafeto, por causa de uma donzela!

Esta leitura dos fatos poderá ser disputada por muita gente, e não vem ao caso se a nossa República foi ou não decidida por um caso de amor mal acabado. A mera sugestão de que isso poderia afetar o resultado de algo tão importante quanto o destino de uma nação imensa como o Brasil, já com uma população substancial, é para lá de fascinante. Dá asas á imaginação...

A meu ver, decisões importantes não são tomadas a toque de caixa, e certamente, quanto mais inteligente for a pessoa, mais fatores, prós e contras, são levados em consideração ao se tomar uma decisão. Ou seja, não acho que foi a perua que causou a mudança de destino da nação. Pode ter sido a gotinha que faltava para o copo transbordar... Porém, o que quero dizer é que pessoas inteligentes tomam decisões complexas ponderando inúmeros fatores - inclusive razões de cunho emocional, e até mesmo fatores para lá de irracionais, como vingança amorosa.

Acredito piamente que Jacky Ickx é  um homem inteligente. De modo geral, os pilotos de endurance bem sucedidos têm que ser inteligentes, e Ickx foi o mais bem sucedido de todos. Assim, acho que a decisão que tomou em Monaco em 1984 se baseou em diversos fatores.

Para nós, brasileiros, ficou aquele gostinho amargo, de que Ickx teria estragado a primeira vitória de Ayrton Senna na F1. Livio Oricchio entrevistou Ickx, que ficou bastante irritado com o jornalista, personalizou as coisas, e insistiu que não tomou a decisão por pressão de Jean Marie Balestre ou de outros, que supostamente queriam a vitória do francês. Ickx também se vangloriou de ter sido o primeiro diretor de prova a ter interrompido um GP com base na segurança.

A tese Balestre me parece descabida. Muita gente inventou esse factóide anos depois, quando JMB e Senna se tornaram desafetos públicos. Na realidade, em Monaco 1984 Ayrton era um estreante com poucos GPs nas costas. Balestre mal se incomodava com ele, embora todos intuíssem que, se permanecesse vivo, Senna seria um dos grandes pilotos um dia.

De modo geral, belgas e franceses não se bicam, como argentinos e brasileiros têm lá seus problemas intestinos. Portanto, não acredito que Ickx abraçaria a causa dos gálicos, em detrimento de qualquer outro povo. Quem sabe, no íntimo, até ocorresse o contrário.

Os louros de ter sido o primeiro diretor de prova a interromper um GP com base em segurança me pareceu exagerado e uma inverdade, na realidade. Nove anos antes, o GP da Áustria de 1975 tinha sido interrompido pela mesmíssima razão. A única diferença é que ainda não tinha ocorrido nenhum grande acidente em Monaco 1984, e na Áustria, Jochen Mass já tinha batido por causa do mau tempo.

Por outro lado, cabe lembrar que  Ickx não era um dos pilotos mais ávidos em lutar pela segurança nas pistas no seu auge na F1. De fato, se recusava a ser membro da GPDA, cujo sonho de consumo era a segurança, e em Zolder, 1973, furou a greve dos pilotos que reivindicavam melhores condições na pista belga, cujo asfalto desintegrava. É verdade  que em Monaco 1984 não era um piloto que tinha certeza que um dia seria campeão da F1, e sim um piloto semi-aposentado, que sabia que nunca seria campeão daquela categoria.

A meu ver, Ickx se assustou com a velocidade de Senna e de Stefan Belloff. Monaco 1984 teve forte chuva, não tão forte quanto Monaco 1972, porém, naquela ocasião, todo mundo maneirou e Beltoise ganhou. Ayrton e Stefan não estavam maneirando, longe disso. Imagino que, com uma mente fértil, Ickx pensou "o que vai acontecer quando Bellof chegar em Ayrton?". Com certeza imaginou o pior, e imaginou morte. Os dois jovens pilotos eram suficientemente obstinados, e seria uma batalha e tanto. E o resultado  poderia ter sido terrível.

Porém, novamente digo que a decisão não se baseou num fato só. O próprio Ickx menciona na épica entrevista com Oricchio, que egos de pilotos de F1 são coisas terríveis. E quem sabe, o próprio ego de Ickx fragilizou e teve uma pontinha de colaboração na tomada de decisão. Esta seria uma chave para desvender este mistério.

Cabe lembrar que Ickx era conhecido como O CARA na chuva. De fato, sua primeira vitória na F1 se deu em condições diluvianas em Rouen, 1968. O mesmo ocorreu em Zandvoort, 1971, e na sua última vitória na F1, a Corrida dos Campeões, em 1974. Nos carros esporte Ickx sempre ia bem quando chovia. De repente ver dois jovens superar as suas realizações era muito para Ickx. Ou seja, assim como o velho Deodoro achou uma forma de ferrar Silveira Martins, e isso contribuiu um pouco para tomar uma decisão de tal porte, quem sabe um flashback da sua carreira e o espetáculo que se desvendava à sua frente foi a gotinha d'água para Ickx terminar a corrida antes da hora.

Ickx também era o rei de Nurburgring, e Bellof conseguira um tempo impossível de imaginar no Nordschleife em 1983. A grande pista também tinha um novo rei.

Falar que Ayrton ganharia a corrida, e que Prost perdeu o campeonato por causa da pontuação pela metade em Monaco me parece um pouco precipitado. Muita coisa poderia ter rolado naquela corrida, inclusive um grande acidente entre Senna e Bellof, que dizer então do campeonato. Ou poderia ter ocorrido o abandono dos três, com a vitória de um quarto piloto. Especular o que poderia acontecer numa corrida de F1 com metade do percurso pela frente é extremamente irrazoável, principalmente nos anos 80. Pode ser que Ickx tenha salvo a vida de Senna e Bellof, pode ser que tenha salvo sua reputação, pode ser que não tenha salvo nada. Agora, contar com certeza com uma vitória de Senna naquela dia me parece quase ingênuo, coisa de torcedor bairrista. Basta lembrar de Monaco 1988.

É mais possível que o alvo psicológico de Ickx fosse Bellof, e não Ayrton!!! Esta é uma possibilidade que os brasileiros nunca ponderaram. Afinal de contas, o alemão começava a ameaçar a supremacia do belga na Porsche, e de fato, foi campeão do Mundial de Grupo C em 1984, superando Ickx, Bell e Mass. Nosso bairrismo nos leva a pensar somente em Ayrton.

Uma tétrica coincidência foi o encontro entre o próprio Ickx e Bellof em Spa, 1985. Numa manobra que alguns diriam um pouco otimista, o extremamente talentoso Bellof, já fora da equipe oficial da Porsche, bateu em Ickx, acidentou-se e morreu. Quem sabe, realmente Ickx teve uma visão clara do que podia ter acontecido naquele dia chuvoso em Montecarlo...

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