Regurgitações facebuquianas, ou Bernie com orelha quente

Antes de mais nada, informo que não conheço Bernie Ecclestone pessoalmente. Não concordo com tudo que fez ou disse até hoje. Nunca recebi dinheiro dele, não fiz negócios com ele, não sou seu parente. Em suma, não tenho razão nenhuma para sair apaixonadamente em sua defesa, nem tenho o rabo preso com o dito cujo.

Além disso, certamente Bernie não precisa da minha defesa. Pode pagar os melhores advogados do planeta, porém, não gosto de ouvir injustiças, nem contra os poderosos. E como li injustiças hoje!!! Gente chamando Ecclestone de velho coroca, que deveria morrer, que deveria se aposentar, etc, etc.

Causou certo furor algo que Bernie disse à imprensa, em nota veiculada: que a F1 não precisa de jovens torcedores. Antes de entrar à fundo na questão, voltemos algumas décadas atrás.

A minha singela tese é a seguinte: simplesmente nas mãos da FIA (ou FISA, ou CSI como queiram), a Fórmula 1 não teria sobrevivido até os dias de hoje.  Sim, teríamos alguma coisa, algum tipo de categoria. que não sei o que seria, porém, aquele campeonato contínuo, que começou em 1950 e permanece até hoje, teria morrido no meio do caminho, no turbulento mundo em constante mutação dos últimos quarenta e cinco anos. Quem a salvou da extinção foi Bernie.

No que me baseio para dizer isso? Nas mãos da FIA-FISA-CSI, só sobreviveram dos anos 70 para cá, além da F1, o Mundial de Rallye e o Europeu de Montanha. Este último, hoje um obscuro campeonato, que nos anos 60 atraía equipes da fábrica da Ferrari, Porsche e Abarth a pilotos de F1. Entre o começo dos anos 70 até os dias de hoje, a FIA conseguiu matar os campeonatos Europeu de F2, Europeu de F3, Europeu de 2 Litros, Europeu de GT, Mundial de Marcas, Mundial de GT, Mundial de Turismo, Europeu de Turismo,Europeu de Formula 3000, entre outros. Coincidentemente, a partir do momento em que a Can Am entrou na órbita da FIA, ela morreu rapidamente. Nas mãos de outros organizadores, morreram a Fórmula 5000, Fórmula Atlantic, Fórmula Super Vê, DRM, Interserie e centenas de outras séries e categorias, algumas promovidas por montadoras. Com mão de ferro, apesar de inúmeras e sérias crises financeiras internacionais, processos judiciais e administrativos, brigas com construtores, organizadores, emissoras de TV e pilotos, proibição de propaganda tabagista, ameaças de greves e campeonatos paralelos, Bernie segurou o lado prático da coisa, o econômico, durante aproximadamente  4 décadas, e a F1 ainda existe em grande parte por causa dos seus esforços. Sim, ficou rico, riquíssimo, porém convém lembrar que com ele ficaram ricos algumas centenas de pilotos, donos de equipes, projetistas, empresários, jornalistas,donos de empresas, etc. De fato, até o começo da década de 70, a profissão de piloto de corridas era uma mistura de glamour, perigo e pouca grana. Foi somente quando o "Padrão Bernie de Qualidade", PBQ, entrou na jogada que os pilotos passaram a ganhar bem, o patrocínio rolou mais solto e em grandes somas, e os pilotos não tinham a necessidade de correr até de carrinho de rolimã para fechar o orçamento no final do mês, arriscando-se e frequentemente perdendo a vida em outras categorias. Em 1974, muitos pilotos (não pagantes) ganhavam 30,000 dólares por temporada na F1. Hoje até um piloto "pagante" leva uns 500 paus para casa. Pode-se até argumentar que o PBQ também levou ao grande padrão de segurança da categoria.

Pura e simplesmente, Bernie teve a visão de estabelecer o marco televisivo para a F1. É muito fácil dizer "isso até eu faria", considerando que hoje vivemos numa época em que há um grande número de canais de cabo e convencionais, alguns até especializados em esportes. Não era assim nos anos 70. Cabe lembrar que na época em que Bernie começou a implementar essa visão, muitos países europeus só tinham um único canal, e um dos países que compunham o calendário mundial de F1, a África do Sul, sequer tinha televisão! Muito fácil dizer, qualquer um teria feito isso, ou com mais ignorância ainda, dizer que BE imitou a NASCAR. Na realidade, foi a NASCAR que seguiu a visão de Bernie, pois as transmissões ao vivo das corridas de stockcar se iniciaram somente em 1978. Muito fácil dizer, "se ele não tivesse feito, alguém faria". Será que alguém realmente teria feito? Certamente não a atrapalhada FIA-CSI-FISA.

Entendo que os jovens se ofenderam, relegados à irrelevância, porém é preciso entender o que está dizendo o astuto e octogenário inglês. Alguns jovens em grupos de F1 no Facebook chegaram a dizer que compram camisetas, miniaturas, tênis, para justificar sua relevância, sem entender que a receita de merchandising, embora não seja insubstancial para seres humanos normais como eu e o leitor, é pífia em relação ao dinheiro de gordos patrocínios. Nas vendas de merchandising, a FIA ganha sua grana (sem fazer quase nada, diga-se de passagem), o fabricante do artigo também, os fabricantes de insumos outra parte, os distribuidores  e os varejistas também, enfim, toda cadeia de produção ganha. Convém dizer que quando você compra um boné da McLaren, quem se beneficia disso é mais a McLaren, não a F-1 em si. Não acho muito difícil entender isso, porém, muita gente parece achar que o dinheiro vai TODO para o bolso de onipotente Bernie e da empresa que representa!

Na realidade, FIA, Bernie, os organizadores e as equipes não fazem parte de um grupo homogêneo. Brigam entre si, por grana, poder e fama, estão em constante tensão.

Em síntese, o que Bernie está dizendo é que os patrocinadores atuais da F1, empresas como UBS e Rolex, não se interessam por jovens impecuniários que compram bonés ou games, não estão apostando que estes serão ricaços em cinquenta anos . O UBS é o maior banco privado do mundo, mal comparando, um daqueles míticos e misteriosos bancos suiços com contas numeradas, ubíquos em todo romance barato de intriga internacional. Rolex fabrica relógios de dez, cem mil dólares. No marketing esportivo atual, a F1 está, ou deseja estar mais posicionada para o lado do golfe, o chato esporte dos "velhos", antítese do automobilismo, que atrai vultosos patrocínios de alto nível, do que o futebol, que atrai patrocínios de massa, produtos populares para as massas. UBS e Rolex não são para diletantes.

O papo de que o esporte é visto em 160 e poucos países não interessa muito aos patrocinadores do quilate de UBS e Rolex, eles não caem nessa. Se são 500 milhões ou 200 milhões de pessoas que assistem a F1, a este tipo de patrocinador interessa algumas centenas de milhares de ricaços que seguem o esporte com certo interesse. Pois são estes que compram Rolex e Ferraris reais, não miniaturas em escala 1-43 ou cópias falsas dos relógios, compradas às pencas de vendedores de rua em Nova York. São eles que depositam suas fortunas em Private Banking mundo afora, não pequenos e suados salários em contas de bancos populares, que no fundo dão prejuízo para a instiuição.

É preciso entender que a medição demográfica que convence empresas deste tipo a investir quantias estratosféricas deve ser precisa, convincente e contundente. Para UBS e Rolex não interessa arquibancadas cheias de jovens espanhóis desempregados, e sim, algumas centenas de ultraricos presentes na pista, ou bastante celebridades para dar um toque de glamour ao evento.

Em suma, o anseio dos promotores de corridas, e de Bernie, são diferentes. Sim, todos querem ganhar dinheiro, só que um se atém à quantidade, o outro, à qualidade. Bernie tem que pensar no produto televisivo, que realmente gera receitas, e cada promotor de GP que pense na sua corrida e em formas de levar público a elas. São duas coisas bastante diferentes, até porque até nas corridas com melhor público "in loco", este é ínfimo em relação à audiência televisiva.

Muitos julgam que ao dizer que prefere setentões cheios da grana, em vez de jovens, Bernie estaria variando, pois os jovens seriam os velhos do futuro. Entendo o raciocínio, porém, convém entender que  a F1 está numa crise, inclusive uma crise comercial. O produto está sendo questionado, e existe ainda por cima a pressão adicional de excluir, além dos cigarros, as bebidas alcoólicas do rol de patrocinadores. Por cima, isto afetaria a Williams, Force-India e McLaren.

Numa crise, procura-se resolver os problemas pontuais, de curto prazo, não num horizonte de médio a longo prazo. De nada adianta agora pensar quando estes jovens de 20 anos tornarem-se setentões abastados, até porque a maioria continuará tão pobre quanto hoje. Não acho que BE esteja errado, nem está louco, nem ficou burro de repente. Na realidade, se a F1 não conseguir se tornar um produto tão válido para patrocinadores de qualidade como é o golfe, provavelmente não sobreviverá, pois a concorrência esportiva, principalmente do futebol internacional, é muito grande e lhe é desfavorável.

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