O mito do acertador de carros brasileiro

Ao ler relatos sobre corridas dos anos 60, várias vezes me deparei com uma afirmação, feita por diversos pilotos. Em corridas noturnas realizadas em Interlagos, diversos pilotos se vangloriavam de desligar seu farol, ao se aproximar de concorrentes no miolo da pista, às altas horas da noite, e assim pegá-los de surpresa. Até aí nada. O problema é que mais do que um piloto dizia isso como se fosse o único a aplicar a esperta tática. Chega-se à conclusão de que a torcida do Flamengo fazia a mesma coisa...

No Facebook, em blogs (inclusive de jornalistas especializados), revistas, livros, etc., propagou-se o mito de que os pilotos brasileiros de Fórmula 1 são OS acertadores de carro, sem dúvida os melhores na existência do esporte!!! Diversos outros pilotos, como Nigel Mansell, Alain Prost, Fernando Alonso e Michael Schumacher teriam se aproveitado dos acertos feitos pelos experts brasileiros, e ganho muitas corridas, e até campeonatos nas costas dos brazucas.

A vida está cheia de mitos, entre os quais que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral. E hoje, na era da programação  neurolinguística, muitos acreditam que basta falar uma coisa diversas vezes, que esta se torna verdade. Acho que o mito do acertador brasileiro tem um pouco de tradição e modernidade.

Imagino que tudo tenha começado nos idos de 1973, quando Emerson Fittipaldi e Ronnie Peterson estavam na Lotus. É um fato conhecido que Ronnie Peterson NÃO era um grande acertador de carros, que na realidade, conseguia adaptar seu estilo de guiar aos defeitos dos carros e extrair velocidade do nada. Emerson era de fato um bom acertador, e como tinha um bom relacionamento com Peterson, é bem possível que tenha passado para o companheiro acertos melhorados durante o curso da temporada. Entretanto, Ronnie já foi veloz logo no início da temporada, e deixando nosso nacionalismo de lado, obviamente foi mais rápido do que Emerson durante quase a temporada inteira.  No fim das contas Ronnie ganhou quatro corridas, e Emerson somente três.

Se analisarmos a questão despidos de ufanismos bestas, vemos que no ano seguinte, com Emerson já na McLaren, Ronnie Peterson continuou a vencer GPs com o velho Lotus 72, e simplesmente arrasou o companheiro Jacky Ickx, dois ou três anos antes considerado o mais rápido piloto da F1. Não havia mais Emerson para acertar os Lotus. Como explicar isso, será que as configurações de Emerson eram tão boas, que duraram uma longa temporada?

Sejamos racionais. Em pelo menos um dos GPs ganhos por Peterson em 1974, o de Monaco, Emerson não esteve bem e Ronnie teve uma performance exemplar. De fato, a McLaren sofreu um mid-season slump, em 1974 e 1975. Emerson era um bom acertador, porém, não era milagreiro, fato confirmado com sua ida para a Copersucar e cinco longas temporadas com pouco sucesso.

Houve sugestões também de que Reutemann usasse acertos de Pace em 1975. Algo que não faz muito sentido, pois Reutemann fora super rápido no começo da temporada de 1974, sem nem sombra de Pace na equipe, e só não ganhou os três primeiros GPs da temporada por uma certa dose de azar.

Com a ida de Piquet para a Williams, em 1986, o mito do acertador brasileiro ganhou dimensões faraônicas. Na Brabham, Nelson de modo geral não tinha companheiros que o atrapalhassem muito. Quando foi para a Williams, logo surgiram os boatos de que Mansell ganhava corridas às custas dos acertos geniais de Piquet. Novamente, lembremos que Nigel já estava ganhando GPs com certa facilidade no final de 1985, sem Piquet, e que nos dois anos em que esteve com o brasileiro na Williams, Mansell ganhou onze GPs, e Piquet somente sete. Em 1988, Mansell conseguiu resultados razoáveis com a Williams com motor aspirado, contra os carros turbo que dominavam o pedaço. E numa das fases de maior domínio da Williams, em 1991 e 1992, não havia nenhum brasileiro por perto na Williams...Na sua ida para a Lotus em 1988, Piquet pouco ou nada fez, apesar de contar com motores Honda TURBO! Como explicar tudo isso?

Tinha gente que adorava dizer que Prost também roubava os acertos de Senna. Isto também não faz muito sentido. Quando Senna chegou na McLaren, Prost já havia ganho dois campeonatos e dezenas de GPs. "Era o Lauda que acertava os carros", diriam uns. Como explicar o campeonato de 86 e a performance de 87?

Eventualmente, criou-se também o mito de que o sucesso da Ferrari no início do milênio se deu porque era Barrichello quem acertava os carros. E Schumi só teria ganhado o que ganhou, por causa dos acertos do brasileiro...

Para começo de conversa, a Ferrari já estava ganhando corridas consistentemente com Schumacher desde a chegada do piloto na equipe, em 1996, diga-se de passagem numa época em que suava para ganhar. E em 1999 o carro da Scuderia já estava suficientemente acertado para dar uma chance ao fraco Eddie Irvine de concorrer para o título.

Mais recentemente, dizem que o Alonso se prevalece dos acertos magníficos de Felipe Massa, e por isso, ganha corridas. Já ouvi também dizer que a Brawn (e o Button) só ganharam o campeonato de 2009 por causa dos acertos do Rubinho...

Não quero ser chato. Tudo isso não passa de ufanismo besta. Os mais bem sucedidos pilotos brasileiros dos últimos quarenta anos geralmente são bons acertadores de carro, sim, porém, o mesmo se aplica aos pilotos de outras nacionalidades. Não temos uma pré-disposição genética a ser excelentes acertadores. Os campeões, de modo geral "sabem o que estão fazendo", parafraseando Kimi Raikkonen. É certo que um ou outro piloto não tenha muita sensibilidade ou conhecimentos mecânicos para acertar carros, porém, estes geralmente estão na traseira do grid, não ganhando corridas e campeonatos. E hoje os acertos são, em grande parte dos casos, feitos por dezenas de engenheiros, que analisam milhões de dados durante o curso de uma corrida, ajudados por nada humanos - ou brasileiros - computadores.

Virem a página, por favor. Papo de mau perdedor.

Comentários

  1. Sendo que na época do começo desse milênio, o Rubinho quebrava muito mais os carros do que o Schumacher. Culpa do acerto escolhido, talvez? hm

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